Quilombos da Bahia: Presença incontestável

Itamar Gomes Amorim                                                                                                                                 Guiomar Inez Germani
Nas Américas as Comunidades Quilombolas recebem várias denominações, Cimarone na América Espanhola, Marrons no Haiti e ilhas do Caribe francês, Maroons na Jamaica, Suriname e sul do E.U.A., Palenques na Colômbia e Cuba, Cumbes na Venezuela, Quilombo ou Mocambos no Brasil. Esta pesquisa visa compreender a espacialização das Comunidades Negras Rurais Quilombolas na Bahia, com intuito de interpretar suas estratégias de localização e reprodução. A metodologia deste trabalho constitui-se em revisão bibliográfica, manutenção do Banco de Dados existente no projeto GeografAR, produção de cartogramas e pesquisa nos órgãos que trabalham com regularização fundiária do estado da Bahia. Com o desenvolvimento dos meios de produção, construção de infraestruturas, empreendimentos turísticos e outras atividades em que a terra irá passar por um processo de valorização, várias Comunidades estão sendo coagidas por latifundiários, empresários e até mesmo pelo Estado, tornando seus territórios cenários de conflitos pela posse da terra, e as que não resistem ao enfrentamento migram de seus territórios. Esses fatos provocaram reações das Comunidades, Sindicatos, Organizações do Movimento Negro, Igreja, parlamentares entre outros que se sensibilizaram e recorreram ao Estado reivindicando o reconhecimento e a legalização das terras destas Comunidades. O reconhecimento das áreas dos Remanescentes das Comunidades de Quilombos, através da Constituição de 1988, leva o conflito para outras esferas. Na Bahia têm-se identificadas 387 Comunidades com diferentes situações fundiárias. A sistematização da situação fundiária é um dos objetivos que esta pesquisa ora em andamento visa alcançar para posteriormente
debruçar-se na Comunidade Negra Rural Quilombola Rio das Rãs.  

introdução
A manifestação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas no Brasil, ocorre devido a resistência que elas tem desempenhado na defesa de seus territórios. As
intervenções incentivadas pelo Estado tem estimulado as ações de vários agentes que vem tentando conquistar os espaços onde as Comunidades habitam. O Estado também aparece como um desses agentes, que atuando através de projetos de infra-estrutura, têm violado esses espaços. As intervenções geralmente são precedidas por violência, a exemplo de conflito pela posse de terra com latifundiário em Rio das Rãs – Bahia; expropriação devido a
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1 Itamargomesamorim@yahoo.com.br Universidade Federal da Bahia 2 Profa. Dra. em Geografia. Profa. do Mestrado em Geografia da UFBA. Coordenadora do Projeto
GeografAR que conta com o apoio do CNPq e do Departament for Internacional Development (DFID).
guiomar@ufba.br

projetos de construção de barragens como em Porto Coris – Minas Gerais e outras intervenções estatais ou privadas na área que ocupam. A resistência destas Comunidades
tem repercutido nos meios de comunicação, aumentado a divulgação de sua existência e as violências a que estão sendo submetidas. Para garantir os direitos destas comunidades, o Movimento Negro, conquistou através da incorporação, na Constituição Federal de 1988, o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que assegura às comunidades a regularização fundiária da área em que vivem.
Este trabalho discute a presença das Comunidades Negras Rurais Quilombolas da Bahia, tendo com um dos eixos a regularização fundiária, buscando compreender seu
processo de territorialização e aprofundando as investigações na Comunidade Negra Rural Quilombola Rio das Rãs, localizada no município de Bom Jesus da Lapa, na Região do Médio São Francisco. A metodologia do trabalho consiste em revisão bibliográfica; seguida do levantamento das Comunidades Negras Rurais Quilombolas da Bahia e na elaboração de um Banco de Dados cujo os dados disponíveis orientarão a elaboração de cartografia específica. Os dados foram coletados nas Organizações Não Governamentais e nos órgãos oficiais. A pesquisa de campo ocorreu na Comunidade Negra Rural Quilombola do Rio das
Rãs onde membros da comunidade prestaram depoimentos. 

Conceito de Comunidades Negras Rurais Quilombolas 
O conceito Comunidades Negras Rurais Quilombolas incorpora as chamadas terras de preto, terras de santo, mucambos ou quilombos. São comunidades formadas
predominantemente por negras e ocupam terras na área rural. São os laços de consangüinidade e de familiaridade que permitem a utilização de áreas de forma individual e
coletiva. Trata-se de estratégias desenvolvidas no processo histórico de adaptação ao ambiente, concomitante com práticas de proteção aos recursos naturais disponíveis. A
maioria das comunidades não possuem registros escritos, sua história é pautada na tradição e transmitida oralmente, podendo ser enterrada com a morte de um ancião. Este conceito se torna funcional por ter a especificidade de incorporar Comunidades Negras Rurais e articular-se com o conceito referendado na constituição de 1988, que denomina-as de Remanescentes das Comunidades dos Quilombo. Os pesquisadores e militantes do movimento negro consideram este termo inapropriado, por remeter e resquício, sobra, resíduo. Considerando sua presença no Brasil e na Bahia e em outros estados constatar-se-ão que não são. Seus atributos essenciais os territórios – lugar onde reproduzem a vida material e simbólica – e as relações estabelecidas com os grupos. Suas particularidades são as formas de acesso a terra. Houve várias formas de acesso à terra, as mais freqüentes foram os quilombos por constituir-se em uma manifestação de insubordinação ao modelo escravocrata. 
(...) o quilomobo marcou sua presença durante todo o período escravista e exeistiu [e existe] praticamente em toda a extensão do território nacional. A medida que o escravismo aparecia e se espraiva nacionalmente, a sus negação também surgia como sintoma da antinomia básica desse tipo de sociedade. (MOURA, 1993, p. 13)

O mosaico de situações que envolveram a ocupação de terras por grupos negros em vários períodos históricos, revela que possuíam conhecimento do espaço e souberam agir
de modo eficiente para conquistar sua liberdade, utilizando estratégias originais para as situações colocadas, sendo o Estado por vezes legitimador dessas ocupações.
A territorialização dos espaços negros envolve muitas origens possíveis das chamadas Terras de Preto, permitindo mediante elas, a representação que se tem e que se faz da realidade de grupo e da realidade da terra. Muitas terras foram doadas por antigos senhores a escravos fiéis; outras resultam de terras doadas a santos, Terras de Santo, nas quais negros libertos se estabeleceram, muitos agrupamentos, comunidades, vilas, bairros, como hoje são chamados resultam da ocupação das áreas devolutas logo após a Abolição ou foram terras compradas por antigos escravos que aí constituíram famílias e organizaram um modo de vida camponês. (GUSMÃO, 1996, p. 8).
Há olhares que contraditoriamente apontam para o significado das Comunidades Negras Rurais Quilombolas: o primeiro é o olhar do outro, não de qualquer um, mas sim
daquele que busca subtrair suas terras. Para estes sua manifestação é incipiente3.
.Apoiados em documentos elaborados pelo poder repressor, constantemente afirmam não ser significativa esta forma de ocupação da terra. O segundo olhar é o significado dos membros da Comunidade, que relatam práticas sofridas pelo seus antepassados, a exemplo de torturas, imposição de atividades em locais que oferece risco a saúde, estigmatização e segregação por outros grupos. A estratégia de formar Comunidades endogâmicas e permanecer restritivos a indivíduos alheios, são as formas mais eficazes de manter a coesão do grupo contra potenciais inimigos externos4. A sua afirmação enquanto negro quilombola está relacionado ao seu conhecimento de um passado específico, que o 

3 Quando caíram os quilombos, os lugares foram dizimados e arrasados, presos os homiziados, e reconduzidos às senzalas de onde haviam fugido, situados a léguas de distância dos centros de maior concentração, as cidades. Não houve continuidade de ocupação das terras. (JÚNIOR, José Cretella. Comentários a Constituição de 88. Apud SILVA, 1998, p. 54). 4 (...) puderam desenvolver mecanismos de seleção e absorção do novos membros. (SILVA, 1998, p.59).

identifique como transgressor da ordem vigente, necessário para exercer sua liberdade, dentro do sistema que usurpava sua exuberância. 
Seguramente, mais que as lutas de resistências organizadas no interior da escravidão, é a própria escravidão que os conduz a ser o que são. Chama atenção a especificidade que os envolve: são grupos negros de origem escrava e que se fizeram camponeses e, portanto, possuidores de terras, até mesmo no interior da escravidão.
São grupos que, desafiando o movimento do sistema, cogitaram uma forma própria de vida e nela engendraram a condição de grupo e, em particular, de grupo negro. (GUSMÃO, 1996, p. 7). 
Outras terras foram adquiridas por pagamentos ou doações. Os territórios ocupados
por essas comunidades tornam-se estratégicos no contexto das novas demandas do modo de produção capitalista, despertando a cobiça de latifundiários, capitalistas e do Estado.
A reivindicação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas de terem suas terras reconhecidas e tituladas, emerge em um contexto onde os Movimentos Negros, exigem do Estado brasileiro políticas de reparação da escravidão e do racismo institucional. A aplicação das políticas de proteção e preservação destas comunidades é dos desafios
postos para o Estado, que por muitas vezes ignora sua existência. Silva é incisivo ao afirmar que a sociedade brasileira insiste em negar cidadania aos quilombolas 
hoje se requer destas comunidades provas de sua ancianidade da ocupação, como condição para o reconhecimento legal da propriedade e o conseqüente direito de serem enquadradas no Art. 68 do ADCT, e permanecerem nas terras que ocupam imemorialmente. Ao imputar aos quilombolas o ônus da prova, subverte-se o princípio elementar do direito segundo o qual o ônus caberia a quem questiona o direito da comunidade (SILVA. 2000, p. 280).
A ignorância das formações dos Quilombos, assim, como a história dos negros e negras reflete a preocupação das elites em manter seus privilégios e exercer quando conveniente a violência física e simbólica. As diferentes denominações atribuídas a essas Comunidades – Quilombo, Mucambo, Terras de Preto e Terras de Santo evoca a possíveis formas de ocupação destes territórios. Quilombo e Mucambo estão geralmente associados à ocupação de terras devolutas. As Terras de Preto associa-se a terras que foram doadas, compradas ou adquiridas como forma de pagamento por serviços prestados por particulares ou pelo Estado. Já as terras de Santo vincula-se a doações à Santos e a Igreja Católica. Essas Comunidades tem como similaridades as formas de utilização da terra e organização política e social. 

A Construção do Banco de Dados
As variáveis que compõem o Banco de Dados para as Comunidades são o nome; o município onde habita; número de famílias; tamanho da área e a situação fundiária. Estas
variáveis permite algumas análises utilizadas para planejar políticas públicas. Com o Decreto 4.887 de 20 de novembro de 2003, estabelecendo o Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA) através do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) como competentes para promover a regularização fundiária das Comunidades houve uma oficina, promovida pelo INCRA, que recebeu o título de “Comunidades Quilombolas da Bahia”, cujo objetivo era construir um banco de dados para as Comunidades e desenvolver o Plano Regional de Reforma Agrária. Participaram pesquisadores, militantes do Movimento Negro, membros de Comunidades, Organizações Não Governamentais e técnicos. Esta oficina propiciou uma Lista Preliminar do INCRA que contabiliza-se 387 comunidades distribuídas por 102 municípios baianos.

Distribuição Espacial das Comunidades Na Bahia
Pode-se identificar duas grandes áreas que concentram a maior quantidades de Comunidades. A primeira é identificada no Recôncavo baiano. Sua presença pode estar
associada aos engenhos de cana-de-açúcar que se desenvolveram durante séculos nesta região utilizando o trabalho em regime de escravidão. A segunda identificada no sudoeste do estado em direção ao norte. Segundo informações o primeiro atrativo para colonização desta região foi a descoberta de ouro e posteriormente o cultivo de algodão, além de gêneros alimentícios que abasteciam os núcleos que se polarizaram em torno dos municípios de Caetité e Rio de Contas. Supõe-se que estas atividades tiveram como base a utilização de mão-de-obra escrava. A presença das Comunidades Quilombolas nestas áreas é atribuída a decadência dessas atividades e o afrouxamento nas relações de poder até então estabelecidas. Nos lugares que não estão na rota atual de atuação do capital internacional/nacional, geralmente não são manifestados conflitos com Comunidades pela posse da terra. Já nas áreas que apresentam investimentos em infra-estrutura e financiamento a produção, são observados conflitos pela posse da terra, a exemplo da região do Médio São Francisco. A distribuição espacial permite supor que diversos fatores atuaram para a escolha das localizações destas comunidades. Fatores como dificuldade de acesso, recursos naturais, relações de permissividade ante grupos que hegemonizam o poder local, articulação com setores da sociedade circundante entre outros. 
Os quilombos, organizações que se constituíram como uma das expressões do desejo de liberdade, assumiram feições organizacionais que levaram em conta os fatores geográficos, ecológicos e o campo de forças sociais próprios ao momento de insubordinação e ocupação do território (SILVA, 2000, p. 273).
Várias comunidades estão concentradas em alguns municípios, a exemplo de Caetité com 28 Comunidades e Vitória da Conquista com 15, a despeito de não apresentarem título de propriedade da terra. Pode-se atribuir como uma das hipóteses desta concentração a falência de empreendimentos agrícolas e a permanência dos negros oriundos destas fazendas nestes municípios. 

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