Afrânio Peixoto
História do Brasil
Afrânio Peixoto (1876-1947)
Fonte digital
Digitalização da 2ª edição em papel
Biblioteca do Espírito Moderno - Série 3.ª - História e Biografia
Cia. Editora Nacional - 1944
Transcrição para eBook
eBooksBrasil
© 2008 Afrânio Peixoto
USO NÃO COMERCIAL * VEDADO USO COMERCIAL
Suceda o que suceder, o Brasil será
sempre uma herança de Portugal.
ROBERT SOUTHEY — “História do Brasil”.
Londres, 1819, v. 3.º, c. XLIV, págs. 697.
O Autor
Afrânio Peixoto (Júlio A. P.), médico legista, político,
professor, crítico, ensaísta, romancista, historiador literário,
nasceu em Lençóis, nas Lavras Diamantinas, BA, em 14 de
dezembro de 1876, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 12 de
janeiro de 1947. Eleito em 7 de maio de 1910 para a Cadeira n.
7, na sucessão de Euclides da Cunha, foi recebido em 14 de
agosto de 1911, pelo acadêmico Araripe Júnior.
Foram seus pais o capitão Francisco Afrânio Peixoto e
Virgínia de Morais Peixoto. O pai, comerciante e homem de
boa cultura, transmitiu ao filho os conhecimentos que auferiu ao
longo de sua vida de autodidata. Criado no interior da Bahia,
cujos cenários constituem a situação de muitos dos seus
romances, sua formação intelectual se fez em Salvador, onde se
diplomou em Medicina, em 1897, como aluno laureado. Sua
tese inaugural, Epilepsia e crime, despertou grande interesse nos
meios científicos do país e do exterior. Em 1902, a chamado de
Juliano Moreira, mudou-se para o Rio, onde foi inspetor de
Saúde Pública (1902) e Diretor do Hospital Nacional de
Alienados (1904). Após concurso, foi nomeado professor de
Medicina Legal da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro
(1907) e assumiu os cargos de professor extraordinário da
Faculdade de Medicina (1911); diretor da Escola Normal do
Rio de Janeiro (1915); diretor da Instrução Pública do Distrito
Federal (1916); deputado federal pela Bahia (1924-1930);
professor de História da Educação do Instituto de Educação do
Rio de Janeiro (1932). No magistério, chegou a reitor da
Universidade do Distrito Federal, em 1935. Após 40 anos de
relevantes serviços à formação das novas gerações de seu país,
aposentou-se.
A sua estréia na literatura se deu dentro da atmosfera do
simbolismo, com a publicação, em 1900, de Rosa mística,
curioso e original drama em cinco atos, luxuosamente impresso
em Leipzig, com uma cor para cada ato. O próprio autor
renegou essa obra, anotando, no exemplar existente na
Biblioteca da Academia, a observação: “incorrigível. Só o
fogo.” Entre 1904 e 1906 viajou por vários países da Europa,
com o propósito de ali aperfeiçoar seus conhecimentos no
campo de sua especialidade, aliando também a curiosidade de
arte e turismo ao interesse do estudo. Nessa primeira viagem à
Europa travou conhecimento, a bordo, com a família de Alberto
de Faria, da qual viria a fazer parte, sete anos depois, ao
casar-se com Francisca de Faria Peixoto. Em 1906, submeteu-se
às provas do concurso em que ganharia as cadeiras de Medicina
Legal e Higiene. Quando da morte de Euclides da Cunha
(1909), foi Afrânio Peixoto quem examinou o corpo do escritor
assassinado e assinou o laudo respectivo.
Ao vir ao Rio, seu pensamento era de apenas ser
médico, tanto que deixara de incursionar pela literatura após a
publicação de Rosa mística. Sua obra médico-legal-científica
avolumava-se. O romance foi uma implicação a que o autor foi
levado em decorrência de sua eleição para a Academia
Brasileira de Letras, para a qual fora eleito à revelia, quando se
achava no Egito, em sua segunda viagem ao exterior. Começou
a escrever o romance A esfinge, o que fez em três meses. O
Egito inspirou-lhe o título e a trama novelesca, o eterno conflito
entre o homem e a mulher que se querem, transposto para o
ambiente requintado da sociedade carioca, com o então
tradicional veraneio em Petrópolis, as conversas do
mundanismo, versando sobre política, negócios da Bolsa,
assuntos literários e artísticos, viagens ao exterior. Em certo
momento, no capítulo “O Barro Branco”, conduz o personagem
principal, Paulo, a uma cidade do interior, em visita a familiares
ali residentes. Demonstra-nos Afrânio, nessa páginas, os
aspectos da força telúrica com que impregnou a sua obra
novelesca. O romance, publicado em 1911, obteve um sucesso
incomum e colocou seu autor em posto de destaque na galeria
dos ficcionistas brasileiros. Na trilogia de romances
regionalistas Maria Bonita (1914) Fruta do mato (1920) e
Bugrinha (1922), que foi violentamente criticada pelos
modernistas, é importante a análise psicológica das personagens
femininas.
Dotado de personalidade fascinante, irradiante,
animadora, além de ser um grande causeur e um primoroso
conferencista, conquistava pessoas e auditórios pela palavra
inteligente e encantadora. Como sucesso de crítica e prestígio
popular, poucos escritores se igualaram na época a Afrânio
Peixoto.
Na Academia, teve também intensa atividade. Pertenceu
à Comissão de Redação da Revista (1911-1920); à Comissão de
Bibliografia (1918) e à Comissão de Lexicografia (1920 e
1922). Presidente da Casa de Machado de Assis em 1923,
promoveu, junto ao embaixador da França, Alexandre Conty, a
doação pelo governo francês do palácio Petit Trianon,
construído para a Exposição da França no Centenário da
Independência do Brasil. Ainda em 1923, deu início às
publicações da Academia, numa coleção que, em sua
homenagem, desde 1931, tem o nome de Coleção Afrânio
Peixoto.
Afrânio Peixoto procurou resumir sua biografia o seu
intenso labor intelectual exercido na cátedra e nas centenas de
obras que publicou em dois versos: “Estudou e escreveu, nada
mais lhe aconteceu.”
Era membro do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, da Academia das Ciências de Lisboa; da Academia
Nacional de Medicina Legal, do Instituto de Medicina de Madri
e de outras instituições.
Principais obras: Rosa mística, drama (1900); Lufada
sinistra, novela (1900); A esfinge, romance (1911); Maria
Bonita, romance (1914); Minha terra e minha gente, história
(1915); Poeira da estrada, crítica (1918); Trovas brasileiras
(1919); José Bonifácio, o velho e o moço, biografia (1920);
Fruta do mato, romance (1920); Castro Alves, o poeta e o
poema (1922); Bugrinha, romance (1922); Dicionário dos
Lusíadas, filologia (1924); Camões e o Brasil, crítica (1926);
Arte poética, ensaio (1925); As razões do coração, romance
(1925); Uma mulher como as outras, romance (1928); História
da literatura brasileira (1931); Panorama da literatura brasileira
(1940); Pepitas, ensaio (1942); Obras completas (1942); Obras
literárias, ed. Jackson, 25 vols. (1944); Romances completos
(1962). Além dessas, publicou obras de outros autores e
numerosos livros de medicina, história, discursos, prefácios.
Fonte: ABL
I Antecedentes
CIVILIZAÇÃO MEDITERRÂNEA. — AS ESPECIARIAS. —
PORTUGAL. — AS NAVEGAÇÕES. — COMÉRCIO. — AS ÍNDIAS.
— O BRASIL.
!
A comunicação entre homens é a causa primeira da
civilização: nestes contactos, a convivência multiplica ações e
reações psicológicas, que se tornam experiências e colaborações
inovadoras e afinam o homem em sentimento, inteligência,
vontade, como fazem iniciativas, empresas, progresso social.
O maior incentivo da comunicação é o interesse, todos
os interesses, dos mais imediatos e prementes, aos mais
transcendentes e espirituais. O gozo comum das utilidades,
depois a fruição pessoal delas, a troca entre posses, finalmente o
tráfico — trabalho, indústria, comércio, já civilizado ou
intercâmbio. Montesquieu pôde, pois, dizer: “A história do
comércio é a história da comunicação dos povos”.
Antes de um domínio, de qualquer maneira social, os
Gregos disseminados pela bacia do Mediterrâneo, entre si
comunicantes, criaram mais do que a Grécia, — Creta,
Micenas, Argos, Esparta, Tebas, Atenas... efêmeras expressões
políticas — fatos apenas mais impressionantes — criaram o
Helenismo, disperso por todo o Mediterrâneo, fazendo ao
mundo de então, e ainda ao de hoje, uma incomparável
irradiação de poder, indústria, espírito e moral, que
conquistaram a terra. E, do Mediterrâneo, essa cultura
transbordou e penetrou em continentes longínquos: antes de
Alexandre chegar às Índias, traficantes gregos tinham chegado à
China. Antes de os Cruzados nórdicos virem civilizar-se no
Mediterrâneo, ao contacto do Império Cristão do Oriente, já
Fenícios, Cartagineses, Gregos, Romanos tinham devassado o
Mar do Norte, até a última Tule. O périplo de Hamon é meio
circuito da África. Ofir ou Sofira, na Bíblia, é Sofala, na Índia.
A comunicação fora acendendo pequenos focos de cultura,
dispensando o prestígio político, tardio e ineficiente para tanto.
A Europa conheceu o Oriente, que lhe veio, penosamente, pelas
caravanas, da Índia ao Mediterrâneo.
As Especiarias
Conheceu a Europa, assim, as especiarias dos trópicos.
Esse supérfluo tornou-se necessário. O clima ajudara a religião
a vestir os homens e, demais, a evitar os banhos — Michelet
pôde dizer, da Idade-Média: nem um banho, em mil anos! — E,
no corpo não lavado e na roupa não mudada — a roupa branca
interna, a camisa, começa a aparecer só depois de 1330 — as
excreções fazem repugnância, incomodidade, repulsão. Os
perfumes tropicais, sândalo, mirra, benjoim, incenso, misturas,
essências, cânfora, tinturas, foram um alívio e um deleite. Com
as essências e os perfumes, o suntuário que agrada à vista,
tapetes, sedas, cetins, telas, damascos, jóias, porcelanas, mil
objetos exóticos invadiram a Europa e tudo era “especiaria”.
Mas, as dominantes, eram as do gosto. A Europa não
aprendera ainda a sucessão sazonal das colheitas, nem tinha
como guardar alimento, da estação calmosa para a estação fria.
Por faltar forragem aos bovídeos, durante o inverno, eram
abatidos, os mais deles, em Novembro, aos primeiros frios, em
todo o Norte, e salgada a carne para o consumo dos meses
seguintes. Não havia a batata, que é americana, nem os legumes
já eram do hábito da mesa, nem a estação os permitiria. O
regime alimentar era, pois, severo e ingrato: trigo e carne
salgada. O tempero, as especiarias tropicais, pimenta, cravo,
canela, gengibre, noz moscada... foram bênçãos do céu... festa
do apetite e alegria do gosto. Dado o hábito, tal suntuário
transforma-se na mais exigente necessidade. O parco mel de
abelhas teve o sucedâneo milagroso do açúcar, a princípio nas
boticas, de tão precioso, depois nas mercearias. O chá, o café, o
cacau, como fora o álcool, viriam a ser delícias desse gosto,
tanto e tão severamente tratado durante séculos.
Por isso, o comércio de especiarias do Oriente, das
Índias, pelos desertos da Arábia e da Síria até o Mediterrâneo,
ou por via de cabotagem, pelo Golfo Pérsico, Mar Vermelho,
até o Istmo de Suez, para o mesmo Mediterrâneo, com escalas
medrosas, comércio em que viriam a primar Gênova e Veneza,
destribuidoras das especiarias ao resto da Europa, por
Nurembergue, Lião, Bruges... aos portos, e ao interior da
Europa medieval, esse comércio, digo, era questão tão vital à
humanidade, como é hoje o senhorio dos mares pelo interesse
insular da Inglaterra, que ora permite ao mundo
intercomunicar-se. Antes, o enriquecimento que esse tráfico
trouxera às cidades italianas, provocara o surto de cultura que é
das causas do Renascimento, por isso mesmo ajudando o
estímulo à competição.
Quando os Turcos tomaram Constantinopla (1453),
quando suas armadas dominaram o Mediterrâneo, quando
Veneza se pôs em guerra contra a Turquia, já seria a
necessidade: o comércio no Mediterrâneo entrou em decadência
e a Europa insistiu noutro caminho, outros caminhos
empreendera para conseguir as especiarias que foram o
incentivo das Navegações e da Revelação. “E, se mais mundo
houvera, lá chegara”. (Lus., VII, 14).
Haviam as Cruzadas ensinado aos Nórdicos o caminho
marítimo, até o fundo do Mediterrâneo: depois dos périplos
piedosos, vieram os lucrativos tráficos marítimos. As conquistas
religiosas haviam aproximado o Oriente de entrepostos, Rodes,
Chipre, Beirute, Grécia, Egito, antes de Pisa, Gênova,
finalmente Veneza, dominante, onde todo o norte da Europa
tinha armazéns, feitores e representações. Comprava-se e
vendia-se e a mercadoria caminhava via terrestre ou marítima.
Além dos produtos exóticos, as indústrias regionais: vidros,
rendas, drogas farmacêuticas, e com isso o tráfico de escravos,
negros, muçulmanos, dálmatas. A moeda de ouro e prata, o
primeiro banco, que datava de 1141, uma frota de 3 a 4.000
navios, governo de plutocratas servindo ao lucro individual e
coletivo, tinham feito, de Veneza, a cidade cosmopolita,
monopolizadora do comércio das especiarias. Isto despertaria
emulação, incentivo e concorrência: os Turcos no Mediterrâneo
iriam ajudá-las.
Portugal
Além do Mediterrâneo, nas terras mais ocidentais da
Europa, estava Portugal. Desprendido de Leão, o pequeno
condado por Afonso VI doado a sua filha e genro, Dona Teresa
e Dom Henrique, iria afirmar-se autônomo sob o filho deles,
Dom Afonso Henriques, o primeiro rei, que já em 1137 bate
Afonso VII na batalha de Cerneja: está Portugal independente e
há-de crescer para o Sul... de Guimarães a Leiria, a Lisboa. Os
Cruzados, de passagem (1147), ajudam-no a tomar Lisboa ao
Infiel, como ajudaram Dom Sancho I a tomar Silves, a outra
capital árabe do sul (1189).
Costas a Espanha, a elevada meseta pára aí, e Portugal já
desce vertentes, por onde correm o Minho, o Vouga, o Douro, o
Tejo, o Guadiana, até o mar. Essa descida da serra, através de
degraus e socalcos, que produzem pão e vinho e azeite, e fazem
a Monarquia agrária dos reis Afonsinos, irá dar, ao apelo do
Atlântico, em face, provocando pescadores, ensinando a
cabotagem, com a experiência e a aventura, a navegação do alto
mar. Essa navegação de cabotagem, as colônias fenícias,
cartaginesas, helenas — Lisboa pretende vir de Ulisses e Viana
de Diómedes... — romanas, tiveram experiência, à vista, do
longo curso dos mares do Norte e do Sul, nesses Cruzados. Já
no fim do século XII traficantes portugueses são denunciados
em Marselha e Mompilher [=Montpellier-NE]. Em 1194
naufraga no Mar do Norte, nas costas da Holanda, um barco
português, carregado de mercadoria. Em 1213 João-sem-terra já
autoriza mercadores portugueses a levarem a mercância a seus
domínios. A escritura de concórdia de 1238, de Sancho II, o
decreto aos habitantes do norte (Toti populo a minio usque ad
daurium) de Afonso III, em 1253, o foral de Gaia em 1255, o de
Viana em 1258, demonstraram que no inter-século XII e XIII
havia tráfico useiro de comércio, com França, Flandres,
Holanda e Inglaterra. Em 1293 negociantes de Lisboa fundam
em Flandres uma bolsa de comércio para auxílio ao tráfico com
os países setentrionais. Já Dom Fernando, em 1380, protege a
marinha mercante, de naus de mais de cem toneladas, isentas de
direitos sobre madeira, ferro e qualquer importação, e até de
impostos “em fintas e talhas nem em sisas” e para proteger os
armadores e marítimos fundara a Companhia das Naus (1). Em
1383 têm negociantes portugueses casa própria em Bruges,
onde se reuniam, antes de trasladada a Antuérpia.
Se o comércio pacífico olhou o norte, o do sul exigiu a
conquista. Quando Afonso III põe fora do Algarve os últimos
Mouros (1249), surge a sugestão de África, do outro Algarve
africano — “Alharb” é o poente ou ocidente, donde também,
para os Portugueses, como para os Mouros, “Algarves d’aquém
e d’além mar”, como um todo indivisível. — Este “Algarve
d’além mar em África” é um apelo.
Dom Deniz [=Dom Diniz=Dom Dinis NT] ajuda a
fundar, definitivamente, em Coimbra, o “estudo geral” ou
Universidade, começado em 1290: é um farol espiritual, de
endereço atlântico, no limite ocidental da Europa: símbolo
dessa missão espiritual que ia caber a Portugal, de primeira mão
— derramar a cultura mediterrânea no mundo, pelas
Navegações.
No mesmo sentido importará marinheiros genoveses
para pilotos e mestres de marinha militar: o Almirante Micer
Manuel Peçagno, de Gênova, sucede, em 1317, ao
almirante-mor lusitano e terá sempre com ele “vynte homens de
Genua sabedores de mar”. (Daí esses Dória, Spinola,
Cavalcanti... que passam a ser nomes nossos). É a experiência
do Mediterrâneo, invocada e transplantada. O pontífice Bento
XII, na bula Gaudemus, testifica que ele formava “dentro de
pouco tempo marinheiros tão ousados e dextros como
dificilmente se poderiam encontrar noutra parte”. Os pinhais
para conter as dunas, que fizera plantar em Leiria, irão servir de
sementeira às naus, assim previstas por Dom Deniz. Como quer
que seja, já em 1336, sob Afonso IV, os Portugueses
redescobrem as Canárias.
Se a dinastia agrária dos Afonsinos já cede aos apelos
marítimos, a de Aviz far-se-á ao mar e, daí, além do tráfico, as
conquistas. Com Dom João I, satisfazendo as ambições
belicosas da nobreza e de luxo da burguesia, Portugal vai a
África e toma Ceuta (1415): era Infiel a bater, mas o Infiel não
interessa em Espanha, declinando Portugal do auxílio invocado
para o expelir de Granada: Ceuta, tomada, impede a Espanha de
a tomar, e Ceuta é, em Marrocos, centro de caravanas, celeiro
de cereais e base militar para proteger a navegação contra os
ninhos de piratas marroquinos. Dom Henrique, armado
cavaleiro na mesquita muçulmana feita templo cristão, vê, ouve,
pondera, para resolver. O norte de África era sonho, até o Egito,
até o lendário Preste João das Índias, suposto cristão e portanto
aliado natural contra o Infiel e seu comércio, que dominavam o
Mediterrâneo... As especiarias pelo norte de África seriam
possibilidade. Chegou-se e entrar em conversações. De 1402 a
1425 viriam seis embaixadas à Europa e cinco outras no sentido
contrário, foram à Etiópia: a de 52 foi mesmo endereçada a
Dom Henrique(2). Em 87 Dom João II dará o último arranco,
mandando Pero de Covilhã e Afonso de Paiva em busca do
Preste. A boa política exige realidades imediatas.
As Navegações
Mas Ceuta foi decepção: posto isolado em meio hostil e,
ao demais, agora trocada por Túnis, pelas caravanas que vêm do
Soldão com especiarias, era entretanto, como disse Dom Pedro,
um dos “inclitos infantes”: “sumidouro de gente, de armas e de
dinheiro”. O outro caminho, o das navegações, daria mais
resultados. Dom Henrique, com as rendas do seu mestrado de
Cristo, ia dar-se a elas, herdado o impulso do Pai. Ao
Mediterrâneo chegara a galé, com o remo, lenta mas segura na
manobra, pois o objetivo principal era a guerra. O Atlântico ia à
caravela, desde 1440, de trinta metros de comprido, alta para
fender as ondas, arqueação para gente, mantimentos e carga, a
seis milhas ou dez quilômetros à hora, graças ao vento nas
velas. “Os Portugueses inventaram o duplo aparelho: velas
quadradas para o vento de popa, velas latinas para o
barlavento”(3): com isto, o invento português foi este — a
navegação ao largo: Colombo, que a fizera, foi aluno, e até
genro, de navegante português. Depois, outros aprenderam.
Estabelecendo-se entre Sagres e S. Vicente, onde
recebia os navegantes e pilotos e conversava com astrônomos e
cosmógrafos, preparando seus planos de contornar a África,
estavam aí simbolizados os dois endereços das Navegações: o
continente negro a costear antes das Índias, o outro para o
desconhecido, que será a América. E a realidade vai-se
substituindo à vontade, que foi sonho. Porto-Santo e Madeira
conhecidas e ocupadas em 14-23-25, os Açores em 1432, o
Cabo Bojador é transposto em 34. No ano seguinte atinge-se a
ponta da Galé, a 22º12’ lat. N. Em 41 Antão Gonçalves vai até
aí, ao Rio de Oiro, já para carregar azeite e peles de
lobo-marinho e tomar informações “das Índias e terra de Preste
Joham e seer podesse” (Zurara, Crônica... da Guiné, ed. 1854,
cap. XVI, p. 94). Começara a chegar ao reino mercância
africana: peles, malagueta (a concorrente da pimenta
indiana)(5), marfim, ouro em pó, principalmente escravos.
Lançarote de Lagos traz o primeiro carregamento deles, 235
peças, das quais 46, ou o quinto, a vintena, para o Infante. Até
48, quando acaba a Crônica de Zurara, são 927 negros e 125
para o Infante. Os negros invadem Portugal e passam a
Espanha, negociados por traficantes, nobres, príncipes, até por
el-Rei D. Afonso V. Clenardo virá a dizer em 1535: “Os
escravos pululam por toda parte: estou em crer que em Lisboa
são mais que os portugueses de condição livre”. (Cf. Gonçalves
Cerejeira, Clenardo, Coimbra, 1918, t. II, p. 14-5, do apêndice).
Não é novidade, pois já dissera Garcia de Rezende na
Miscelânea: “Vemos no reino meter tantos cativos, crescer e
irem-se os naturais, que se assim for, serão mais eles que nós, a
meu ver”.
Mas, em 43, alcançava-se a Senegâmbia, passava-se o
Senegal, chegava-se à terra dos Guinéus, atingindo o Cabo
Verde, a 14º,4’ lat. N. Em 44 era organizada a Companhia de
Lagos para exploração comercial da costa, arrendado o
monopólio: ainda hoje a tradição mostra, aí, o mercado dos
escravos: a Casa de Guiné foi em Lagos. Em 47 dobra-se o
Cabo dos Mastros. Em 60 exploram-se as ilhas de Cabo Verde.
Quando morre o Infante de Sagres, nesse ano de 1460,
do Cabo Não ao Cabo Mesurado, 1.700 milhas geográficas do
périplo africano estavam reveladas. O Infante não era um
místico, como o romantismo quis fazer dele: era um estadista,
um político, com o trato das realidades: fomentou a cultura do
campo nas terras do seu Mestrado de Cristo; desenvolveu e
criou indústrias novas, a pesca, o coral, a tinturaria, a saboaria,
a moagem; traficou com peles, malagueta, escravos. (Cf. Jaime
Cortesão, História de Portugal, ed. Damião Peres, Barcelos,
1931, t. III, p. 363). Mandou vir a cana do açúcar da Sicília para
a Madeira, onde fez plantar canaviais, fundou um lagar ou
engenho, importou artífices e técnicos, deu privilégio de fabrico
(1452), reservando o terço da produção para o seu erário: o
primeiro doce foi para presente a príncipes e nobres. Depois
chegou-se a prover Lisboa de umas 120.000 arrobas por ano,
para o reino e o restante para Flandres, a Provença, Sul de
França, Veneza. Também fez vir de Chipre a vide doce e seca,
que dá o vinho quente e generoso: dois séculos mais, o vinho
Madeira terá universal renome e substituirá, na pauta, o açúcar,
emigrante para a América. Açúcar, vinho generoso, malagueta,
peles, ouro, escravos eram, antes das Índias, o suprimento
africano das especiarias: o Atlântico já substituindo o
Mediterrâneo.
Depois de Dom Henrique as navegações passam à
Coroa, intensificadas por Dom João II, escoado o interregno de
Afonso V, cujas proezas em África — Alcácer-Ceguer, Tânger,
Arzila — são defensivas contra os ninhos de pirataria
marroquina. D. João II, vivendo ainda seu pai, explora, por sua
conta, — como o pai explorara escravos, a vender para
Espanha, — o comércio e a pesca na Guiné, proibida a
concorrência. Em 81 dará o apoio militar a esse comércio com o
Castelo de S. Jorge da Mina, fortaleza que era, a um tempo,
também armazém ou depósito de mercadoria, a trocar, vender e
comprar. El-Rei teve até navios a frete. “O dono da nação era
agora comerciante, como tinha sido em outros tempos
lavrador”(6).
Mas as navegações continuaram. Em 71 é a Costa de
Malagueta, a Mina do Oiro, no Rio do Lago, chegam do além
do Cabo das Palmas, feito de João de Santarém e Pedro
Escobar. Em 82 chega-se ao Zaire, onde já se chanta padrão de
pedra; em 84, pelo mesmo Diogo Cão, ultrapassa-se o Equador,
que, em 85, fica atrás, no Cabo Negro alcançado. O arranco
definitivo foi, porém, a expedição de Bartolomeu Dias, para
vingar, em 88, o Cabo que chamou Tormentoso, porque o
dobrou em meio de tempestade, e, só de retorno, teve a noção
do triunfo. Atingira e passara a meta. Dom João II mudou tal
nome em cabo de Boa Esperança,(7) “pela que ele prometia —
diz o cronista João de Barros — deste descobrimento da Índia,
tão esperada e por tantos anos requerida”. Acabada a África, a
caminho para a Índia!
Tanta era a obsessão desse caminho, que não se quis ver
mais. Cristóvão Colombo, que habitara a Madeira, casado com
portuguesa, filha do navegador Bartolomeu Perestrelo,
concebera a idéia de chegar à Índia pelo Ocidente. Andou na
Corte de Dom João II “ladrando” o seu requerimento, diz o
cronista João de Barros, “vaidade” disse, dele e seu plano, um
conselheiro d’el-Rei, o bispo Dom Diogo Ortiz. Foi-se a
Castela, onde esteve anos, combatido e motejado, até que a
piedade de Isabel a Católica lhe deu as jóias empenhadas, para
três caravelas. Em 1492 chegava à América, e lá tornaria outras
vezes, sem dissuadir-se que não havia, por aí, caminho para as
Índias. Não importa: é a América, não se sabe o quê, mas
alguma coisa grande será. Será mesmo pretexto para um ajuste
de contas, dos irmãos contrários, Portugal e Espanha. Um papa
espanhol, Alexandre VI (Bórgia), aproveita o momento para
dividir o mundo, pólo a pólo, em duas bandas, entre Espanha e
Portugal: a Bula Inter Coetera é de 4 de Maio de 1493. O
Tratado de Tordesilhas, em que as duas partes limitam estas
suas posses, assim doadas, é de 1494.
Portugal prosseguiria na sua direção, não mais com Dom
João II, que escolhera Vasco da Gama para a empresa dos
Lusíadas, porque morre, mas recolherá Dom Manuel a glória de
chegar às Índias, em 1497. O Infiel pode dominar o
Mediterrâneo: as especiarias têm outro caminho, finalmente,
para chegar à Europa. O monopólio era de Veneza: passa a
Lisboa(8). A pimenta comprada na Índia a três cruzados o
quintal, chegará no Egito a oitenta, e muito mais em Veneza,
pois vai escasseando tanto, que as expedições tornam vazias,
sem um fardo... Depois de Vasco da Gama custará menos de
trinta cruzados, em Lisboa, e haverá a que se queira...
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Gostei do post. Muito bom!
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